Avançar para o conteúdo principal

“Está Caro”- exposição de tema relacionado com notícia da atualidade:

Como já fomos abordando desde o nascimento deste blog, o Direito Administrativo teve uma infância no mínimo difícil. E um dos seus grandes traumas é, na verdade, a responsabilidade. 

Um exemplo muito conhecido que demonstrava esta traumática infância era o de uma criança que é atropelada por um carro de uma empresa pública de tabaco. Esta criança ficou lesada para o resto da vida e por esta razão os seus pais decidiram pedir uma indemnização e para tal, vão ao tribunal de Bordéus que se declara incompetente de decidir, pois estaria em causa uma empresa pública. Além disso, não havia uma norma aplicada, e na altura dizia-se que o Code Napoléon só se aplicava a iguais e por isso não se aplicava a autoridades administrativas. Então, os particulares teriam como alternativa recorrer ao tribunal de conflitos, mas continuava a não haver regras aplicáveis e portanto seria necessário criar um Direito administrativo para proteger a administração e os particulares em relação à mesma. E é neste sentido que surge a distinção entre o regime da responsabilidade por atos de gestão pública e regime de responsabilidade por atos de gestão privada. O primeiro seria regulado pelo Direito administrativo e era da competência dos tribunais administrativos enquanto o segundo era regulado pelo Direito civil e da competência dos tribunais civis. 

Mas entende-se que o regime da responsabilidade é o que está aqui em causa, e este deve ser uno. Qual seria o sentido de num caso a administração ter certas regras e no outro não? Nenhum. E isto na prática criava as maiores “ridicularidades”, desde já porque ninguém sabia distinguir entre o que era uma atuação administrativa de gestão pública e a de gestão privada. Vejamos um exemplo. Se alguém fosse a conduzir um automóvel que tipo de gestão estaria aqui presente? Admitindo que o automóvel é da Administração se houvesse um acidente deve ser a “AP” a responsabilizar-se. E assim, deveria haver um regime para todos os desastres no âmbito da AP, uma lógica unificada. Todavia, até 2002/04 a lógica era esquizofrénica, aliás não era de todo lógico. Dizia-se num exemplo como este que tudo dependia de quem ia a guiar e de quem estava dentro do carro. Considerava-se gestão privada se só lá estivesse o condutor e pública se lá estivesse também o titular do carro. Vejamos o caso do ministro Eduardo Cabrita: 

Em 2021, um caso chocou Portugal. O ex-ministro da Administração Interna seguia num carro conduzido por o seu motorista na A6 em excesso de velocidade e disto decorreu o atropelamento e a morte de um senhor de 43 anos que procedia a obras de manutenção na estrada. Este seria um caso de gestão pública porque o ministro estava dentro do carro e segundo este pensamento poderia supostamente ter dado ordens para que o motorista conduzisse mais devagar, que tivesse atenção à estrada, que abrandasse. E se Eduardo Cabrita não estivesse no carro, mas imaginemos o motorista o fosse apanhar em algum local, então já estaríamos perante gestão privada. No primeiro caso aplicar-se-iam as normas de Direito administrativo e do tribunal administrativo e no segundo as de Direito civil e do tribunal civil. E pergunto, seriamente, que sentido é que isto faz? Segundo alguns professores, como o professor Vasco Pereira da Silva, nenhum. Sabia-se lá se o motorista não poderia estar no segundo caso em chamada telefónica com o ministro e a receber ordens suas! É uma dualidade esquizofrénica cuja, como já havia afirmado, só se explicaria pelos traumas de uma infância difícil. 

No entanto, finalmente em 2004 acaba-se com esta distinção e no CPTA entende-se que os tribunais administrativos são sempre competentes. E em 2007, o legislador resolveu regular esta questão e a primeira coisa que se tinha de fazer era resolver aquilo que toda a gente tinha discutido, a esquizofrenia, mas infelizmente o legislador nem mesmo assim a resolveu diretamente. Na verdade, o que diz no artigo 1º nº2 do regime da responsabilidade civil extracontratual é que corresponde ao exercício da função administrativa: as ações e omissões adotadas no exercício de prerrogativas e depois fala ainda em disposições ao princípio do direito administrativo que era o critério que o professor Marcello Caetano utilizava para distinguir gestão pública da privada. Contudo, o professor Vasco Pereira de Silva considera que o legislador fala de prerrogativas de Direito público e disposições de Direito administrativo de forma equívoca, mas que o facto de ter remetido para os princípios do direito administrativo e de nos termos do CPA, estes princípios serem aplicáveis a toda e qualquer atuação da AP, ainda que meramente técnica ou de “gestão privada”, permite unificar o regime jurídico da responsabilidade civil e resolver a esquizofrenia. 

E em qualquer dos casos o ministro devia ser responsabilizado!


Isabel Ventura

Fontes: 

Aulas do professor Vasco Pereira da Silva 

Notícia do observador: https://observador.pt/2021/12/09/cabrita-vitima-tera-sido-atropelada-3-metros-antes-do-veiculo-de-sinalizacao-das-obras-diz-testemunha/

Diogo Freitas do Amaral, "Curso de Direito Administrativo", volume II

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Petição Inicial

Meritíssimo Juiz de Direito, Florbela Betão, nascida em 04.05.1967, portadora do número de CC 55555555, com residência na Avenida da Liberdade e Diretora da Faculdade de Arquitetura enquanto representante desta instituição, Vem, nos termos dos artigos 58º e segs., do CPTA, intentar a presente ação administrativa contra o antigo titular das Finanças, e atual vice-Reitor do ISER e contra o próprio Ministério das Finanças.  Visando: A) A determinação deste ato administrativo como ilegal e portanto a sua anulação.  B) Que a Administração Pública elabore um novo despacho em que incluísse o financiamento também do Centro de Investigação para Estética dos Edifícios Públicos, da Faculdade de Arquitetura.  Dos factos: 1. Foram apresentados 22 projetos pelo Ministério da Ciência e do Ensino Superior. 2. O Ministério da Ciência e do Ensino Superior apresentou estes projetos por considerar que todos tinham mérito para receber financiamento. 3. Estes projetos estavam em igua...

À descoberta do sentido do artigo 266º da Constituição da República Portuguesa:

Importa primeiro dizer que, o artigo 266º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, que fala na prossecução do interesse público por parte da Administração Pública, não é critério único da ação administrativa. Seguindo a lógica é óbvio que há que prossegui-lo, no entanto, essa persecução ocorre mediante o respeito simultâneo dos direitos subjetivos e os interesses legalmente protegidos dos particulares. Podemos dizer que o nº1 do referido artigo apresenta uma certa dualidade de princípios que se concretizam na prossecução do interesse público e, também, no respeito pelos particulares, mais concretamente, no respeito pelos direitos do mesmo. De notar que apenas se a lei permitir e se se encontrar uma justificação razoável, a Administração Pública pode pôr em causa, numa decisão, os direitos supramencionados, podemos então concluir, que, nunca haverá um desrespeito pelos direitos dos particulares. Deixar em gesto de nota que, partilho da opinião do Professor Vasco Pereira da S...

Post Rodrigo Sousa da Câmara Martins Ferreira - A relevância do procedimento administrativo na Contratação Pública

 Por impossibilidade de acesso ao blogue por problemas de compatibilidade do e-mail, eu Rita Reigadas deixo em seguida o post da autoria do colega Rodrigo Sousa da Câmara Martins Ferreira com o número de aluno 140120515 a pedido deste. A relevância do procedimento administrativo na Contratação Pública Numa sociedade com um Estado, que deseja ser interventivo na vida social e no mercado, requer-se a utilização de mecanismos jurídicos e procedimentais para satisfazer os seus objectivos. A intervenção do Estado pode ocorrer através de dois principais mecanismos, nomeadamente; a legislação, por exemplo através da proibição do exercício de certa actividade profissional ou não; e a aquisição de bens/produtos/serviços, como por exemplo através de um contrato público para a aquisição de uma plataforma digital para uma entidade pública. Para o exercício de poderes legislativos o Estado socorre-se dos mecanismos constitucionais, que legitimam a Assembleia da República e o Governo (també...