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Post Rodrigo Sousa da Câmara Martins Ferreira - A relevância do procedimento administrativo na Contratação Pública

 Por impossibilidade de acesso ao blogue por problemas de compatibilidade do e-mail, eu Rita Reigadas deixo em seguida o post da autoria do colega Rodrigo Sousa da Câmara Martins Ferreira com o número de aluno 140120515 a pedido deste.


A relevância do procedimento administrativo na Contratação Pública




Numa sociedade com um Estado, que deseja ser interventivo na vida social e no mercado, requer-se a utilização de mecanismos jurídicos e procedimentais para satisfazer os seus objectivos. A intervenção do Estado pode ocorrer através de dois principais mecanismos, nomeadamente; a legislação, por exemplo através da proibição do exercício de certa actividade profissional ou não; e a aquisição de bens/produtos/serviços, como por exemplo através de um contrato público para a aquisição de uma plataforma digital para uma entidade pública. Para o exercício de poderes legislativos o Estado socorre-se dos mecanismos constitucionais, que legitimam a Assembleia da República e o Governo (também as regiões autónomas), 112º CRP, como os órgãos capazes de emitir atos legislativos (vulgo “leis”) dotados do jus imperii e aplicáveis pelo poder de autoridade do Estado.

Mas note-se que o poder do legislador não é absoluto, tem limites constitucionalmente consagrados, tanto pelos direitos fundamentais constitucionais, tanto pelo princípio da competência que dita que tanto o governo, como a assembleia da república ou as regiões autónomas apenas podem legislar naquilo que lhes seja constitucionalmente permitido.

Feito uma sumária introdução, torna-se agora relevante começar a fazer a ponte com o tema principal deste artigo, a contratação pública.

Ora como já referido a outra forma que o estado tem de intervir na sociedade é através da sua participação no mercado, seja como regulador seja como agente económico. Falaremos aqui da sua participação como agente económico e “consumidor”.

Existem diversos bens de “utilidade pública”, cuja garantia do acesso generalizado à população, o Estado afirma ser o seu dever de fornecer. Ora todo e qualquer bem produto ou serviço tem custos materiais financeiros. Por exemplo para fornecer hospitais públicos o estado tem que necessariamente despender recursos financeiros uma vez que alguém tem que fazer o trabalho real no campo. Não pode simplesmente utilizar do seu poder de autoridade para forçar pessoas para construir directamente o hospital, ou para serem médicos gratuitamente. Assim, o Estado tem que fornecer este serviço através da aquisição de serviços com recurso ao dispêndio de recursos financeiros.

É relevante perceber que, uma vez que o Estado não é um agente produtor da sociedade, todo e qualquer dinheiro que o estado aufira e despenda é obtido através do recurso ao seu poder de autoridade, sendo o principal mecanismo de aquisição de riqueza do estado ou recurso à colecta de impostos. Ora esta colecta é constitucionalmente legitimada, mas; e por via dos direitos fundamentais à propriedade privada, livre iniciativa económica e autonomia privada; tem limites e ponderações a cumprir, sendo constitucionalmente entendida como um “mal menor e necessário” na medida da garantia dos outros deveres e necessidades colectivas.

Assim, derivamos aqui que a participação económica do estado no mercado através da aquisição de bens, produtos ou serviços é feita com recurso ao dinheiro da sua população e para o interesse desta. Logo, exige-se que a despesa feita pelo estado, através do seu executor a Administração Pública, seja efectuada da forma mais eficiente e menos onerosa. Para direccionar o legislador e a administração neste sentido, diversos princípios jurídicos foram consagrados tanto na constituição, como em leis especiais de finanças públicas ou leis de procedimento administrativo (como o CPA); faça-se referência ao princípio de economia, eficiência e eficácia, ou ao princípio da boa administração entre outros.

Então, já temos aqui um dos principais fundamentos da necessidade de uma contratação pública eficiente o facto de os recursos a serem utilizados serem da população e serem escassos.

Ora, antes de concluirmos com a relevância do procedimento administrativo na contratação pública e como este pode assegurar melhor o cumprimento destes princípios e fundamentos, abordaremos ainda um outro grande fundamento e principio que justifica a necessidade do procedimento de contratação pública. O principio da concorrência.

Ora, na intervenção económica pela administração no mercado é preciso compreender que há dois vectores de efeitos aqui, o efeito que o mercado tem no estado e na sua aquisição de serviços, e o vector de sentido contrário do efeito que o estado tem no mercado.

No primeiro vector, temos os impactos e utilidades da concorrência de mercado no estado enquanto consumidor. Nomeadamente, se a administração procurar adquirir os seus serviços através de uma abertura concursal concorrencial entre os vários agentes económicos que participam e fornecem serviços naquele setor, então poderá a administração assegurar uma aquisição mesmo serviço pelo menor valor possível, entre as várias ofertas existentes no mercado. Assegurando assim a poupança dos seus recursos, que poderá utilizar na satisfação de outras “necessidades colectivas” que sejam ainda consideradas necessárias de fornecer.

No segundo vector, e um impacto menos falado, mas não por isso menos importante, temos o impacto no mercado da participação do estado como consumidor e fornecedor. Ora, se o Estado arroga a si o dever de fornecer certos serviços, então quer dizer que se substitui a produtores privados que poderiam fornece-los directamente. Por exemplo, o Estado ao assegurar que fornecerá saúde e educação “gratuita” (é importante perceber que aparenta gratuidade para o utente, mas na realidade é onerosa à custa do contribuinte), ocupa uma grande fatia de um potencial mercado privado nestas áreas, fazendo com que seja impossível (ou extremamente difícil) que um agente privado possa tentar fornecer esses serviços de maneira directa ao utente final através da abertura de uma escola privada ou hospital privado. Assim, a intervenção do estado no mercado enquanto consumidor e também como fornecedor tem impactos nos restantes agentes económicos que, doutra forma poderiam potencialmente fornecer os serviços directamente à população, mas que neste cenário têm que os fornecer ao Estado para este os fornecer depois à população. Assim, o Estado torna-se um intermediário muitas vezes, entre o produtor privado e o consumidor/utente final. Pelo que, então, se torna relevante que a aquisição pública de serviços seja feita com respeito ao princípio concorrencial, não só pela poupança e utilidade directa dos recursos do estado, mas também pela justiça de mercado em relação aos outros agentes económicos. Veja-se que, se a administração adquirir mais caros e piores produtos no mercado então, os operadores económicos que os conseguiriam produzir melhor e mais barato são destruídos, uma vez que nem têm hipótese de tentar fornecer o mercado privado visto que o estado, ao dizer que fornece aquele serviço “gratuitamente”, asfixiou o mercado de consumo oneroso desses serviços.

Em suma, vemos que o respeito pelo princípio da concorrência de mercado é um dever da administração enquanto agente do estado na sua intervenção no mercado. Para bem próprio da administratação, do contribuinte, do consumidor/utente e do produtor económico.

Eis que, então, demonstrada a necessidade fundamental de uma participação racional do estado, através da Administração, no mercado se torna necessário arranjar mecanismos que assegurem essa racionalidade. Surge aqui o procedimento administrativo como este mecanismo.

Através da disposição de princípios e normas procedimentais, atenda-se a vários dos princípios consagrados no início do CPA, gerais para procedimentos administrativos ou especiais para o procedimento de formação de um contrato público (como o CCP), implementa-se um mecanismo que assegure (mais) o respeito pelo principio da concorrência de mercado. O mesmo funciona neste sentido através de duas vias, a primeira é a da indicação e condução dos funcionários da administração no caminho correcto, isto é, dando-lhes um sistema mecânico que ajude na melhor tomada de decisão da maneira mais objectiva e “correcta” possível; a segunda via é a da “prestação de contas”/accountability, através não só de normas concretas que tutelem a responsabilidade reintegratória do funcionário da administração, mas também através dos regimes gerais de nulidade ou anulabilidade associados aos diferentes vícios que possam ocorrer num procedimento administrativo.

O CCP (Código dos Contratos Públicos), que é resultante da transposição de directivas europeias, dispõe um enorme conjunto de normas que visam regular esta fase pré-contratual entre a administração e o particular.

Naturalmente não se fará aqui uma análise exaustiva deste ato legislativo, no entanto introduziremos os principais regimes de formação de contrato público.

Ora os 3 principais regimes de formação de contracto são o Concurso Público, a Consulta Prévia e o Ajuste Directo.

O Concurso Público é o regime regra, ou seja, aquele que sempre se aplicaria salvo casos especiais ou excepcionais, consiste na (como o nome indica) abertura de um concurso a qualquer operador económico e não tem limite de preço base. Exige-se à priori da abertura do procedimento concursal que na entidade administrativa estejam previstas verbas para a aquisição do serviço ou bem, assim como que seja fundamentada a necessidade de contratar. Note-se que esta exigência é transversal a qualquer tipo de regime de aquisição de bens produtos ou serviços pela administração. Assim, cumpridos os pré-requisitos do procedimento, publica-se em Diário da república o anúncio do concurso bem como se fornece o acesso as peças do procedimento, nomeadamente o programa do concurso bem como o caderno de encargos. Nestas peças, além dos requisitos materiais necessários a cumprir estarão também delineados os mecanismos de avaliação das propostas, que têm de seguir uma lógica de encontrar a proposta economicamente mais vantajosa para a administração numa relação de necessidade e qualidade/preço. Assim, após a fase de submissão de propostas o júri irá elaborar um relatório preliminar onde se revela a intenção da entidade do futuro ato adjudicatário, este relatório convida à apresentação de pronúncias ao abrigo do direito de audiência prévia, consagrados nos diversos textos legais já falados (CRP, CPA, CCP), para que os operadores concorrentes possam ser ouvidos antes da produção da decisão final de adjudicação. 

Muitas outras nuances existem em relação ao concurso público. Como por exemplo; os valores que obriguem a publicar não só no Diário da República, mas também no Jornal Oficial da União Europeia. A partir de um certo valor tem de se publicar no Jornal Oficial da EU, no entanto é meramente para divulgação, uma vez que mesmo os concursos pequenos apenas cá divulgados também já são abertos aos operadores económicos dos restantes estados membros da União; ou até a existência de tipos especiais de concursos públicos como o concurso por prévia qualificação entre outras nuances. 

Não sendo o fundamento deste texto descrever a fundo todos os regimes e mecanismos de contratação pública sumariemos os restantes dois já abordados.

A consulta prévia consiste num procedimento de formação de contrato híbrida entre o ajuste directo e o concurso público, neste regime a entidade administrativa elabora as peças do procedimento que seguirá um regime concursal. No entanto é um concurso por convite, onde a entidade administrativa convida discricionariamente pelo menos 3 operadores económicos a apresentar proposta ao procedimento, sendo que depois o júri escolherá a proposta economicamente mais vantajosa das apresentadas. Dependendo do tipo de contracto, se for de obras públicas ou de aquisição de serviços por exemplo, o preço base máximo varia, no entanto, existe sempre um limite de preço máximo de adjudicação por este regime, sendo que, por exemplo, nos serviços o preço máximo era de 75.000€.

Finalmente abordando o ajuste directo, tal como o nome indica consiste na adjudicação directa da entidade administrativa a um operador económico sem qualquer tipo de abertura de procedimento concursal. Aqui, a administração envia um convite à apresentação de proposta a um operador económico com um preço máximo que se disponibiliza a pagar por aquele bem ou serviço. Regra geral o limite do ajuste directo é o menor de todos os tipos de regimes de formação de contractos.


Assim veríamos que o procedimento administrativo de formação de contrato público, através do seu regime regra, o concurso público, visa assegurar o cumprimento do respeito pelo princípio da concorrência que é o pilar fundamental na contratação pública. Garantindo não só que a administração inaptamente busca a melhor opção económica, como também garante (através de direitos fundamentais dos administrados/particulares como o direito de audiência prévia) que os particulares possam escrutinar a produção de atos administrativos que levem à formação de contratos públicos.


Sendo tudo isto acima dito verdade, revelando a relevância da existência do procedimento administrativo na contratação pública, é importante também referir que o “regime regra” da contratação pública (o Concurso Público) não passa senão de um regime regra formal e não material. Na realidade, a maior parte dos contratos públicos são celebrados com recurso ao ajuste directo ou consulta prévia, uma vez que todos estes têm nuances e excepções que permitem à administração o recurso a estes regimes sem limites de valores. Exemplificando, a discricionariedade da administração a selecionar quem convida para uma consulta prévia permite que se convide dois operadores económicos que se sabe que não estão interessados no procedimento e que não apresentarão proposta, o que garante muitas vezes que se faça um ajuste directo material por um valor superior ao permitindo; ou noutro exemplo a permissão de ajuste directo independentemente do valor no caso de previamente ter havido um concurso público deserto, ou por via de respeito por propriedade intelectual (no caso da aquisição de um serviço de manutenção de um bem já adquirido previamente). 


Em suma, podemos ver que existe uma justificação e necessidade de uma contratação pública racional que respeite o princípio da concorrência de mercado, que o procedimento administrativo é importante no sentido de assegurar a existência de um comportamento racional por parte do administrador, mas que, e para concluir, não é ainda capaz (pelo menos nos actuais moldes legislativos) de assegurar que todos os atos adjudicatários cumpram efectivamente com o princípio fundamental da concorrência.



Rodrigo Sousa da Câmara Martins Ferreira

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