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"A noção de ato administrativo e o Modelo de Estado andam de mãos dadas! "

 

A noção de ato administrativo tem uma componente histórica que está irremediavelmente perdida pois tal conceção está intimamente ligada à noção de Administração Pública e ao modelo de Estado que está em causa:

 

1) Estado Liberal e uma Administração Agressiva

O ato administrativo nasceu com o Estado Liberal, no seio de uma Administração agressiva e limitada (séc. XVIII e XIX) e caracterizava-se por ser um ato que se destinava principalmente a garantir a segurança através da polícia e das forças armadas. Por este motivo, habitualmente denomina-se a visão do ato administrativo deste período como “ato polícia”, estando esta associada à ideia da centralização máxima do poder administrativo – conceção atocêntrica, isto é, o ato administrativo era tudo e todas as coisas.

Ademais, a atuação da Administração pautava-se pela não intervenção na vida da sociedade, por se crer que as realidades económicas eram algo que tinham a ver com a dinâmica da sociedade, pelo que intervinha exclusivamente para pôr em causa os direitos dos particulares.

 Do ponto de vista da teoria do ato administrativo, traduz-se em duas realidades diferentes:

 

- Otto Mayer

Vai partir da equiparação entre Administração e justiça, na lógica positivista a legislação era a função criadora. Aquilo que caracteriza o ato administrativo é a definição do direito pois define o direito aplicado ao súbdito no caso concreto.

Assim, baseando-se nesta comparação entre o ato administrativo e sentença, vem dizer que esta decisão do poder público/administrativo gozava ainda da característica da suscetibilidade de execução coativa contra a vontade do súbdito – a Administração podia executar essa definição do direito contra a vontade do particular.

 Isto era a realidade que veio a ser teorizada no final do séc. XIX/XX que assentava naquilo que tinha sido a construção do Estado liberal no séc. XVIII e XIX. Não deixa de ser curioso que esta teorização surge quando o Estado Liberal, enquanto realidade efetiva, estava a desaparecer e portanto, tais teorizações vão perdurar para além da existência desse modelo de Estado – em Portugal até aos anos 80.

 

- Hauriou

Compara o ato administrativo com o negócio jurídico. Embora parta de base diferente, chega ao mesmo resultado positivista sociológico de Mayer.

Considerava que havia exorbitância e privilégios relativos à Administração que eram de dois tipos:

§  Definitório – a Administração definia o poder aplicável ao particular no caso concreto

§  Executório – suscetibilidade de execução coativa contra a vontade do particular.

 

- Marcello Caetano

Adota a construção deste género. Estas duas características vão influenciar Portugal – ato administrativo como ato definitivo e executório. Esta ideia vai permanecer em Portugal até 2004.

O ato era definitivo pois definia de forma autoritária e definitiva a vontade Administração e o direito aplicável ao particular no caso concreto. Tal realidade vai-se traduzir na executoriedade como característica dos atos – correspondia ao privilégio de execução prévia.

 Em Portugal, esta realidade é construída primeiramente num aspeto meramente doutrinal. Com a CRP de 33 é introduzida no quadro do direito administrativo. Mesmo com a CRP de 76 vai permanecer a garantia de impugnação contra atos definitivos e executórios, que só é afastada com a revisão constitucional de 1989. Contudo, mesmo assim ela resiste de forma limitada e cheia de exceções na lei de processo (art.25º). Por fim, com a reforma de 2004 do contencioso administrativo, esta fórmula do ato definitivo e executório vai desaparecer.

Tal lógica do ato definitivo e executório foi teorizada por Marcello Caetano que afirmava que quando se falava em definitividade era preciso considerar três dimensões:

1) Produção de efeitos – elemento material.

2) Tempo da decisão – para este autor, só o último ato do processo administrativo é que era definitivo

3) Órgão que toma a decisão – era tomada por parte do órgão de topo. Conceito de definitividade configura a decisão de última instância que põe termo ao processo administrativo gracioso e é tomada pelo órgão de topo da Administração, o Governo.

 Mais tarde, esta teorização vai ser retocada pelo Professor Diogo Freitas do Amaral que faz menção à tripla definitividade:

§  Definitividade material – corresponde à definição do ato.

§  Definitividade horizontal – aquela que põe termo ao procedimento e que define a decisão final, que é aquela que conta. O ato era horizontalmente definitivo quando correspondia ao ato final do processo.

§  Definitividade vertical – quando era praticado pelo órgão de topo da Administração

 Estas teorizações colocavam o ato administrativo no centro de tudo pois tudo era construído em razão do ato. Otto Mayer inclusivamente negava a existência de contratos. Posteriormente, Hauriou, Marcello Caetano e Diogo Freitas do Amaral vão admitindo outras formas de atuação, mas o ato continuava a ser a personagem principal no direito administrativo. O ato polícia autoritário correspondia a estas duas características.


2) Estado Social e uma Administração Prestadora

Trouxe novas funções que o Estado é chamado a desempenhar na vida social, cultural e económica. Tal mudança vai transformar o modelo de Administração e vai também transformar a hierarquia das funções do Estado pois na lógica do Estado liberal, a função principal era a função legislativa – agora, a função das funções é a função administrativa.

Surge então a Administração Prestadora que passa a intervir na vida económica, cultural e social atribuindo vantagens aos particulares.

Ao lado do ato polícia surge o ato prestador que era atributivo de vantagens e benefícios aos particulares. Esta realidade vai alterar de forma brutal os quadros tradicionais da teoria do direito administrativo pois a caracterização do ato polícia perde toda a relevância na lógica deste novo modelo de Administração:

A Administração deixa de estar relacionada com a justiça – não define o direito (definitividade material), utiliza-o como um meio para a satisfação das necessidades coletivas. A Administração nada tem a ver com a justiça pois esta resolve litígios entre particulares e a primeira satisfaz necessidades coletivas. Os atos administrativos são atos jurídicos pois produzem efeitos jurídicos, mas não são atos de definição do direito.

A ideia da tripla definitividade vai ser posta em causa. Definitividade material – o ato não define o direito, logo não goza de definitividade material. A Administração usa o direito para praticar o ato que corresponde ao exercício de atribuições, mas é um ato de satisfação de necessidades coletivas.

A realidade complexifica-se e portanto o modelo concentrado no Governo deixa de fazer sentido. A Administração do Estado Social vai trazer entidades muito diversas que desconcentraram o poder dentro da hierarquia administrativa. O Governo deixa de ser chamado a intervir pois tal intervenção torna-se desnecessária.

Dentro do próprio Estado, ocorreu o fenómeno de desconcentração pois a Administração passou a repartir a sua atividade por quem tem competência – pode praticar o ato quem tem competência para tal. O Governo perde a sua dimensão dirigente e passa a ter uma função coordenadora.

 O procedimento deixa também de ser uma realidade simples para passar a ser uma realidade complexa que junta vários procedimentos. A ideia do que o que interessa é a decisão final deixa de fazer sentido pois esta vai ser tomada no quadro do procedimento em vários momentos em que há manifestação de opiniões da Administração – a própria ideia de definitividade horizontal vai ser posta em causa.

No ato da administração prestadora a ideia de executoriedade e privilégio da execução prévia deixa de fazer sentido pois o ato administrativo continua a ser um ato jurídico mas já não é autoritário, não define o direito, utiliza-o e pode ser praticado por qualquer órgão titular de competência ou até por qualquer particular no exercício da função administrativa. Além disso, o que está em causa já não é o produto final da Administração, mas sim tudo o que se passou no quadro daquele procedimento.

O privilégio de execução prévia passa a depender da lei. Ainda assim, os atos favoráveis não são por natureza suscetíveis de aplicação coativa pois o particular quer e solicita o ato e portanto não faz sentido impor o ato ao beneficiário.

Em Portugal a ideia de definitividade foi contestada pela escola de Coimbra. Rogério Soares vem afirmar que não faz sentido a construção lisboeta pois os atos administrativos não gozavam da característica da executoriedade. Para este professor a única que poderia ser relevante na produção dos efeitos do ato era a eficácia. Em relação à definitividade a alternativa era ideia do ato regulador – este é menos do que o ato definitivo e executório e corresponde à produção de efeitos jurídicos, estes que sejam qualificados. Os efeitos jurídicos teriam que ser novos, alterando assim a ordem jurídica. Era o ato como simples produtor de efeitos jurídicos.

Esta ideia do ato regulador por um lado abandona a ideia da definitividade horizontal, mas por outro tende a manter a ideia de definitividade material, ainda que pouca. Desaparece a ideia de definição do direito, embora se exija que o direito seja novo mas procura manter-se a ideia de definitividade vertical de modo a justificar a necessidade de haver recurso hierárquico.

É uma construção intermédia em Portugal, mais adequada segundo o Professor Vasco Pereira da Silva. É o ato como simples produtor de efeitos jurídicos, no quadro de um procedimento e dando origem a modificações e extinções de relações administrativas.

Esta mudança de dimensão social faz com que os atos prestadores passem a ser a maioria e os atos polícia a minoria. Põem em causa o conceito de ato administrativo e também a própria noção de ato definitivo e executório como garantia de recurso.

 

3) Estado pós social e uma Administração Reguladora/Infraestrutural 

Vem trazer uma nova modalidade de Administração – Reguladora ou infraestrutural. Este modelo pretendia essencialmente criar infraestruturas materiais e jurídicas para realização da função administrativa entre Administração e particulares.

Vai dar origem a outro modelo de ato administrativo, o ato de eficácia múltipla (multilateral) – decisões administrativas produzem efeitos numa multiplicidade de sujeitos. Implica que o mesmo ato produza efeitos diferentes nos múltiplos sujeitos.

Passamos a ter uma Administração multifacetada que pratica atos de diferentes formas:

o   Atos Polícia – com a executoriedade limitada pela lei.

o   Atos Prestadores – de natureza favorável e não são definitivos nem executórios

o   Atos Multilaterais – produzem efeitos numa multiplicidade de sujeitos.

Deste modo, a construção de ato administrativo que vigorou no séc. XVIII e XIX já não é adequado para a realidade do séc. XX e XXI.

 

 Antes de concluir, prende-se a questão de qual, posto tudo isto, a noção adequada de ato administrativo para o Professor Vasco Pereira da Silva?

 Ora, esta noção terá, então, de ser uma noção ampla e aberta que permita englobar todos estes tipos de ato, ou seja, que sirva para a administração agressiva, prestadora e infraestrutural.

Tem de existir um sujeito que produza o ato, que pode ser um órgão administrativo como um particular no exercício de funções administrativas. Tal ato tem de produzir efeitos numa situação individual e concreta, e estes, por sua vez, não têm de ser efeitos inovadores ou definitivos, têm de ser simplesmente efeitos jurídicos. Este ato é praticado no decurso de um procedimento e cria, modifica ou extingue relações jurídicas.

Em suma, é um ato da manifestação de vontade na prática da função administrativa, que é praticado no quadro do procedimento e que cria, modifica ou extingue relações jurídicas administrativas e produz efeitos jurídicos individuais e concretos.


BIBLIOGRAFIA: 

- Apontamentos das Aulas do Professor Vasco Pereira da Silva

- DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo Vol. II (4ª edição, Almedina, Coimbra, 2020).


Maria Teresa Machete nº140120122


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