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A Esquizofrenia do Contrato Público

 

No quadro do Direito português, com a instalação de iluminação em certas ruas de Lisboa e Cascais nos finais do século XIX implantou-se a divisão esquizofrénica que separava os contratos celebrados pela AP e os contratos ditos administrativos. Os primeiros correspondiam aos casos de gestão privada em que se celebrava um contrato privado com um particular e subordinava-se às regras de Direito civil; enquanto que os segundos diziam respeito aos contratos de Direito Público da competência dos tribunais administrativos e que correspondiam a um poder especial da AP, embora não se soubesse exatamente que poder era este. Freitas do Amaral e Marcelo Caetano defendiam que eram os poderes de execução coativa e as cláusulas exorbitantes.

As coisas começaram a mudar quando, nos anos 80, o Direito Administrativo se transformou – anos da necessidade de repensar o Direito Administrativo em face de uma realidade diferente e a necessidade de procurar uma explicação diferente da dos traumas da infância difícil que procurasse explicar a realidade dos nossos dias.

Quem deu o primeiro passo neste sentido foi a prof Maria João Estorninho na sua tese de mestrado “Requiem pelo contrato administrativo” – para explicar que distinguir o conceito de ato administrativo tipo francês do conceito de ato administrativo celebrado pela AP era algo que não fazia sentido. Aquilo que a prof Maria João Estorninho dizia era que os contratos administrativos não eram exorbitantes - porque eram iguais a contratos idênticos celebrados entre particulares, uma vez que as cláusulas contratuais tinham que prever os poderes da AP ou, não estando previstos, tinham que resultar da lei - e, por outro lado, porque os contratos eram idênticos aos celebrados entre os particulares nas mesmas condições e no mesmo tipo de contrato. Veio também acrescentar que nem os contratos privados eram tão privados assim porque os contratos ditos privados da AP eram praticados pela AP que primeiro tinham que tomar a decisão de contratar (ato administrativo) e toda a relação contratual estava submetida às regras de Direito Público (submetia-se ao Orçamento, aos Princípios gerais da atividade administrativa).

Assim, não havia razões para a dicotomia esquizofrénica, isto é, o contrato administrativo enquanto realidade autoritária não fazia sentido e, portanto, era preciso encontrar um regime para todos os contratos da AP – por não ter lógica terem regimes e tribunais competentes diferentes.

Isto gerou uma grande discussão que fez com que vários autores estivessem de acordo com essa ideia. O primeiro a concordar que não fazia sentido a tal esquizofrenia foi o prof João Caupers que pouco depois escreveu que não havia distinções para a esquizofrenia, sendo necessário estabelecer para os contratos com as mesmas características um regime comum para todos os atos administrativos. Depois, também o prof Marcelo Rebelo de Sousa aderiu a esta tese no seu manual de Direito Administrativo, dizendo que estavamos perante contratações da AP e que, em vez de se caminhar no sentido da esquizofrenia era preciso caminhar no sentido de regras comuns ao exercício da função administrativa. O próprio prof Vasco Pereira da Silva entrou na discussão por efetivamente entender que a esquizofrenia não fazia qualquer tipo de sentido, visto que a contratação pública era (e é) uma realidade normal que existia cada vez mais, pelo que tinha que ser tratada enquanto tal.

Mas, tirando esta corrente doutrinária que procurou difundir esta situação, do outro lado, mantinha-se o setor tradicional que rodeava o prof Freitas do Amaral (nomeadamente Sérvulo Correia, Vieira de Andrade, entre outros). Mantiveram a ideia de que o contrato administrativo, enquanto construção com uma grande tradição histórica tem muitas virtualidade e continuaram a manter essa distinção.

Portanto, não foi a discussão que transformou as coisas. O que verdadeiramente transformou a noção de contrato público e que fez com que tenhamos nos dias de hoje uma noção diferente foi a UE no âmbito das suas políticas públicas, nos anos 90, que entendeu que não podia haver liberdade de circulação de pessoas, bens e capitais se não houvesse um regime comum para toda a contratação pública. E, portanto, era preciso que um particular que residisse na Alemanha pudesse candidatar-se a uma obra em Portugal, por exemplo. Para que as regras fossem comuns, a UE tinha que encontrar um conceito comum. Adotando o sentido esquizofrénico de contrato administrativo, não apenas enfrentava contradições teóricas, como encontrava o desconhecimento de todos os países que não fossem França, Espanha, Portugal e Itália.

A UE arranjou, assim, dois critérios para distinguir aquilo a que chama contratos públicos que devem ter uma regulação especial preocupada com os fins do contrato e com a sua lógica do contrato de direito público. O primeiro critério foi positivo (em rigor são dois), no sentido de dizer que todos os contratos que correspondam ao exercício da função administrativa são contratos públicos e que existiam contratos que independentemente se serem celebrados entre entidades públicas ou privadas, gerariam sempre contratos públicos em virtude da sua área/setor (água, energia, eletricidade…). O segundo critério, de natureza negativa, dizia que alguns contratos em virtude das circunstâncias, muito embora incluídos na cláusula dos setores especiais, podiam ser excluídos de serem contratos públicos – cláusula dos setores excluídos.

Esta realidade espalhou-se por todos os países da Europa. Em Portugal, a primeira norma a regular esta realidade foi no âmbito do Contencioso Administrativo o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que estabeleceu pela primeira vez a unidade contenciosa – qualquer contrato celebrado pela AP é da competência dos tribunais administrativos (art. 4º).

Fonte: Aulas do Professor Vasco Pereira da Silva

Beatriz da Costa Ribeiro (140120186)

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