Princípio da legalidade
O
princípio da legalidade sofreu várias alterações ao longo dos anos e em tempos
foi entendido de uma forma que hoje não é mais aceitável.
Este
princípio começou por ser visto através de uma lógica formal em que a sua
existência significava uma submissão à lei, lei esta que limitava a atuação da
administração. Assim, como as leis eram limitadas em número e matéria, a
legalidade funcionava como um instrumento de afirmação da administração, sendo
que entendida nestes termos, formais e limitadores, a referida submissão á lei
valia de pouco. No quadro do poder discricionário, não havendo lei, a
administração era livre de fazer o que considerava mais adequado.
Mais
tarde, veio dizer-se que não bastava olhar para este princípio através de uma
logica formal, mas simultaneamente material. É necessário interpretar a norma
com as limitações que esta introduz, não havendo verdadeiramente uma liberdade.
A imposição de limites pela norma funciona como uma barreira à vontade da
administração, havendo assim um maior controlo desta. A transformação deste
princípio é o reconhecimento de que a administração não é livre na forma como
atua e de que o poder discricionário é uma concretização do princípio da
legalidade, é o respeito pelas limitações impostas pela lei que a administração
é obrigada a cumprir.
De
modo a aprofundar o desenvolvimento da legalidade enquanto princípio iremos
analisar o pensamento da doutrina portuguesa através de quatro autores que desenvolveram
estudos no âmbito do direito administrativo, sendo eles: Professor Marcelo Caetano, de seguida o
Professor Freitas do Amaral, depois o Professor Sérvulo Correia e por último o
analisaremos o pensamento do professor Vasco Pereira da Silva.
Professor Marcelo
Caetano-
Inspirado
por Otto Mayer, considerava que a vinculação e a discricionariedade eram
realidades distintas e separadas. Onde existia vinculação não existia
discricionariedade, e, portanto, no âmbito da vinculação estaríamos sempre
dentro da legalidade. Ou seja, o cumprimento rigoroso da lei, sendo que o seu
incumprimento dava lugar a uma ilegalidade. No âmbito do poder discricionário,
Marcelo Caetano entendia-o como uma exceção ao princípio da legalidade, era
visto como uma liberdade de atuação por parte da administração.
Apesar de
perspetivar a discricionariedade como uma liberdade, foi capaz de lhe
introduzir dois limites. O primeiro é a competência, isto é, não poderia
haver discricionariedade na atribuição das competências sob o risco de estarmos
perante um vicio das competências. O segundo limite introduzido é o fim,
ou seja, o quando havia atribuição de um fim específico este tinha de ser
prosseguido e sempre que se praticava um ato diferente do fim estabelecido
estávamos perante um vicio do fim que corresponderia a uma ilegalidade. Neste
sentido há uma limitação ao entender que o desvio das competências e do fim são
os únicos fatores geradores de ilegalidades, tendo em conta que, nos dias de
hoje, os tribunais qualificam vícios e ilegalidades com base em mais aspetos do
que apenas estes.
Professor Freitas
do Amaral:
A
sua teorização é típica de um estado de direito democrático. Em rigor defende que
existem sempre elementos vinculados e discricionários na norma, nunca há apenas
elementos vinculados e elementos discricionários. Este é um grande avanço face
á teoria anterior que separava de forma rígida os dois conceitos e ignorava a
possibilidade de “coexistirem” ambos numa só norma.
Freitas do Amaral
introduz uma ligação mais efetiva entre os conceitos de vinculação e
discricionariedade, pois na sua lógica estamos sempre perante uma verdadeira
combinação destas duas realidades. Em qualquer poder vinculado existem
elementos discricionários e o contrário também é verdade.
Entendia também
que para além dos elementos do fim e da competência, adotados por Marcelo
Caetano, era necessário olhar para todo o ordenamento jurídico inclusive os
princípios que vinculam a administração. Foi o professor Freitas do Amaral quem
deu este passo de alargar as vinculações a que a administração pública está
sujeita, pois a realidade é que quando violados os princípios, por exemplo, o
da proporcionalidade, também estamos diante de uma ilegalidade.
Apesar dos
avanços, este autor, mantinha alguns elementos do passado continuando a
referir-se ao poder discricionário como uma liberdade, sendo que quem tem
liberdade são os indivíduos, já a administração tem apenas uma vontade jurídica
normativa encontrando-se balizada. Esta era uma visão algo limitada que deixava
para segundo plano o poder discricionário. Também se verificam, nesta conceção,
limitações quanto ao entendimento dos princípios, porque apesar de ter sido
este o autor quem os introduziu como forma de alargar as vinculações que a
administração tem de seguir, Freitas do Amaral parou numa logica restritiva.
Para este, o princípio da boa administração não era um verdadeiro princípio e,
portanto, quando violado não dava lugar a uma ilegalidade, segundo esta tese.
Os princípios fizeram com que questões de mérito se relacionassem com questões
de ilegalidade
Professor Sérvulo
Correia-
Este
autor vai mais longe alargando o alcance da discricionariedade e vem dizer quem
há mais um momento em que é possível observar este poder. O primeiro momento em
que se verifica a discricionariedade é na reserva da livre decisão, aqui
a administração tem um poder de escolher entre várias opções que tem a sua
disponibilidade, tem que ver com a decisão em si. O segundo momento em que se
observa este poder é na livre apreciação dos factos, primeiro é
necessário apreciar os factos, enquadrá-los na norma e só depois se toma uma
decisão. Neste aspeto esta foi uma teoria que permitiu um bom desenvolvimento
relativamente ao princípio da legalidade e deu espaço para que outros autores
explorassem este assunto aperfeiçoando as suas próprias visões do tema.
Professor Vasco
Perira da Silva-
Segundo
o professor, a norma tem ambos os poderes, tanto o vinculado como o
discricionário, não havendo normas integralmente vinculativas nem normas
integralmente discricionárias. Segundo esta conceção o poder discricionário é
uma concretização do princípio da legalidade, não existe uma verdadeira
liberdade. A discricionariedade, apesar de ser uma realidade que permite a
realização de escolhas, está limitada e sujeita a princípios jurídicos que
servem como barreiras á atuação da administração pública. A escolha da melhor
solução será a ponderação de princípios o que resultará numa boa decisão.
A lógica liberal
entendia que a legalidade era a submissão rigorosa das leis e que a
discricionariedade era uma exceção segundo a qual a administração era livre de
praticar os atos que considerava necessários. Nos dias de hoje, e tendo em
consideração o pensamento de autores como Vasco Pereira da Silva. Este é um
raciocínio que não faz sentido, pois a legalidade tem uma dupla dimensão – a
vinculação e a discricionariedade- que concretizam a lei.
Esta visão
introduziu, face á teoria em cima descrita, um outro momento em que o poder da
discricionariedade atua- a interpretação. A primeira coisa que a administração
tem que fazer é a interpretação da norma, um exercício que admite a
discricionariedade e em que há margem para determinar o sentido do texto. Ainda
relativamente à teoria anterior, a presente tese afirma que não faz sentido
falar-se em livre decisão e livre apreciação dos factos, uma vez
que o que existe realmente é uma margem de decisão e uma margem de livre
apreciação dos factos
A legalidade é o
fundamento, o critério e o limite da atuação da administração pública. É o
fundamento no sentido em que é a lei que motiva a sua atuação, e é esta que diz
que a administração deve atuar de determinada maneira. É o critério, dado que
estabelece um parâmetro na atuação da administração e é o limite, na medida em
que, a violação de normas leva a uma ilegalidade e, portanto, estes limites têm
de ser respeitados para uma boa atuação.
O novo
entendimento da legalidade permite um maior controlo sobre o poder
discricionário e consequentemente da forma como age a administração, há uma
lógica mais exigente da legalidade. A escolha da administração não pode nunca
ser livre e ainda hoje é muitas vezes utilizada a expressão liberdade aquando da
referência ao poder discricionário, esta expressão é infeliz porque estamos
perante uma vontade jurídica normativa que atua sempre segundo a lei.
Exposição de um exercício prático que ilustra o que foi escrito
anteriormente
Através
de um paralelismo entre o princípio da legalidade e uma receita culinária,
mostraremos a sua eficácia na prática de um modo peculiar, mas de fácil compreensão,
sendo que para tal decidimos transpor a aula teórica lecionada pelo professor
Vasco Pereira da Silva num momento de culinária, já que aquilo que o exercício que o jurista realiza é semelhante aquilo
que um cozinheiro faz na sua cozinha. Portanto, em conjunto, realizámos uma
receita culinária que foi nos fornecida por uma senhora da aldeia (conhecida
pelas suas delícias de pastelaria) de modo a dar a conhecer aos leitores como
se realiza o processo de passar da realidade escrita à realidade prática na
ordem jurídica portuguesa precisamente através da correlação entre uma receita
e o exercício deste princípio.
Tal
como o professor nos explicou em aula, à medida que se lê a receita vamos
fazendo uma comparação com as três vertentes do processo lógico da aplicação de
uma norma. Primeiramente, interpreta-se (quer a receita, quer a norma), através
da perceção das palavras; em segundo lugar, aplica-se a norma aos factos; e por
último lugar, escolhe-se os mecanismos a adotar para a realização de um bom
produto final, neste caso o bolo, e na dimensão administrativa uma boa decisão.
Numa perspetiva atual do princípio em todos
estes momentos estão presentes o poder vinculado e discricionário, tal como
visto anteriormente na exposição teórica, da mesma forma em que numa receita
culinária há sempre aspetos obrigatórios a serem seguidos e outros que em que
há uma margem de escolha, a junção destes dará um ótimo bolo e a melhor
decisão, na logica administrativa
Procedemos,
então, para a divulgação dos ingredientes para este bolo de chocolate:
·
4
ovos
·
150
g de óleo
·
250
g de açúcar
·
150
ml de leite
·
200
g de farinha de trigo
·
125
g de chocolate em pó
·
1
colher de chá de fermento em pó
Indicados
os ingredientes exige-se, desde logo, a verificação do primeiro momento - a
interpretação, perceber o que está em causa e dar-lhe um sentido. Num segundo
momento é preciso perceber se podemos realizar ou não a receita e, para isso é
necessário ver se temos á nossa disposição todos os ingredientes de forma a conseguir
cumpri-la.
Relativamente
ao primeiro ingrediente (os ovos) é fácil perceber que a receita não exige um
determinado tipo de ovos, podendo estes ser tanto de galinha como de avestruz
ou outra qualquer ave. Já a quantidade dos ovos, tem de ser aquela mencionada
sob risco de estragar a receita. Assim, entende-se que o aspeto discricionário
da norma seria o tipo dos ovos, em que há uma margem de escolha e o aspeto
vinculado seria a quantidade a utilizar. Transpondo o exemplo para o quadro
administrativo, a administração teria que seguir de forma rigorosa a quantidade
dos ovos, caso contrário, estar-se-ia perante uma ilegalidade.
O
segundo ingrediente é o óleo e, portanto, é essencial que se verifique se temos
o óleo, de que marca e qual a quantidade necessária. Quanto à escolha da marca,
esta caberá na nossa discricionariedade. Temos várias opções de marca entre as
quais é possível escolher e, por isso esta escolha, de modo a ser a melhor
possível, precisa de uma ponderação, por exemplo aquela que é mais acessível,
mas de boa qualidade. Esta é uma escolha legítima no quadro da nossa receita e
no quadro da legalidade, no entanto, se em vez dos 150g de óleo colocássemos 250g,
esta já não seria legitima, uma vez que representa um elemento vinculado da
receita/norma não havendo margem de escolha neste campo. Acrescentar mais 100g
à receita corresponderia a uma ilegalidade da administração, por violação da
norma.
O
ingrediente seguinte é o açúcar. Mais uma vez é preciso verificar se temos o açúcar,
qual a marca e qual a quantidade descrita na receita. Havendo o açúcar cabe ao
cozinheiro fazer a escolha da marca sendo que esta não influenciaria na receita,
já que estamos no âmbito da discricionariedade. Imaginando agora que o
cozinheiro só tem à sua disposição 110g de açúcar, ora esta quantidade não é
suficiente e arruinaria a receita da autora. O mesmo acontece no quadro da
realidade administrativa, pois se um elemento vinculado da norma for ignorado e
a administração decidir agir de uma forma que estravasse os limites da norma
então estamos perante uma ilegalidade, lembrando sempre que a administração não
age de forma livre, mas sim balizada e que a sua vontade é apenas uma vontade
jurídica e normativa que atua segundo a lei.
A partir daqui o processo de
raciocínio repete-se para os restantes ingredientes e, por essa razão não continuaremos
a explicação, de modo que não se verifiquem muitas repetições e para que a
presente exposição escrita não perca a sua dinâmica.
Para
a execução da receita propriamente dita a autora descreve os passos a seguir:
1.
Pré-
aqueça o forno a 180 e unte a forma
2.
Junte
todos os ingredientes num recipiente, excepto a farinha e o fermento. Misture
com a a batedeira à velocidade máxima ( antigamente bastava a colher de pau e
por isso também poderíamos utilizá-la)
1.
Junte
a farinha e o fermento ao recipiente com os outros ingredientes e misture o
tempo que for necessário até que a massa fique com uma textura consistente.
2.
Verta
a massa na forma e leve ao forno cerca de
35 minutos.
3.
Verificar
se o bolo está cozido desenforme após alguns minutos.
A
própria interpretação da receita é um exercício que pressupõe aspetos que dispõem
de uma margem de opção e simultaneamente aspetos que devem ser seguidos de
forma inflexível.
A
receita diz-nos: “Pré-aqueça o forno a 180 graus e unte a forma”, pré aquecer o
forno a 180 graus significa que o forno tinha de estar a essa temperatura
exata, para que não aquecesse demasiado nem ficasse demasiado frio. Colocar a
200 graus queimaria o bolo e desrespeitaria a norma. Untar a forma é essencial,
mas o que se utiliza para a untar cabe na vertente da discricionariedade, bem
como o formato da forma, desde que sirva para o propósito em causa, que é ir ao
forno. Neste sentido, o poder discricionário que é a escolha da forma também se
encontra balizado e condicionado pois tem de alcançar o objetivo pretendido
Prosseguindo
para a próxima etapa, a receita diz-nos “Junte todos os ingredientes num
recipiente, excepto a farinha e o fermento. Misture com a a batedeira à
velocidade máxima”, ora a junção de todos os elementos menos da farinha e
fermento deve ser seguida à risca, já a utilização de uma máquina especifica
não. A marca da máquina pode variar e até mesmo a máquina em si, uma vez que, o
que se pretende é que os ingredientes fiquem misturados, sem grumos, por isso,
até se poderia utilizar um batedor manual desde que na velocidade máxima.
Quanto ao tempo da mistura, caberia ao cozinheiro, o interprete da receita,
averiguar o tempo ideal para que a mistura apresentasse uma consistência
homogénea. Assim, esta questão entrava no campo do poder discricionário, campo
esse em que o cozinheiro analisava as diferentes opções de consistência e
optava pela melhor através de uma ponderação e equilíbrio, tudo para o
aperfeiçoamento do bolo e no âmbito do princípio em estudo, para uma melhor
decisão.
Diz-se
na etapa seguinte que “Junte a farinha e o fermento ao recipiente com os outros
ingredientes e misture o tempo que for necessário até que a massa fique com uma
textura consistente”. Juntar os outros ingredientes que faltam não há grande
margem para dúvidas e, por isso, não há qualquer problema nesta interpretação.
Porém, através desta indicação, percebemos que como continuam sem anunciar o
tempo da mistura, cabe no âmbito da margem de escolha.
A
questão do tempo é novamente um problema, já que “ cerca de 35 minutos” exigidos
interferem na cozedura do bolo. Este é, portanto, um limite e um passo que tem
de ser seguido de forma vinculada, caso contrário o bolo pode ficar cru ou
queimar acabando por estragar o resultado final, tal como acontece em decisões
da administração.
Por
último “desenforme após alguns minutos”, como nada nos diz novamente acerca do
tempo, basta estar atento para que o bolo esteja na cozedura equilibrada, com o
propósito de não acontecer o desastre do bolo se desfazer nesse procedimento. É
preciso ser perspicaz no tempo ideal para que se desenforme e isso é uma
escolha do cozinheiro, bem como a capacidade de interpretar, analisar e
executar o que lhe foi exigido e o mesmo acontece com o intérprete na
ocorrência uma norma menos
explicita.
Posto isto,
concluímos que através deste exercício tão simples como uma receita de
culinária foi possível estabelecer um paralelismo desde o primeiro momento em
que se lê e interpreta a lei até ao momento em que se toma a decisão. O
executante de direito, porém, está subordinado pela lei na margem de escolha das
suas decisões. Deste modo, nunca se pode falar em escolhas livres em absoluto,
já que a lei estabelece as margens que fazem com que o poder de decisão não
seja livre, sendo esta o fundamento, critério e limite da atuação administrativa. Logo, o poder ainda que seja discricionário
tem aspetos balizados. Na prática, a Administração toma as decisões que julga ser a solução mais adequada ao caso concreto.
Contudo, a escolha só é correta se for alvo de uma ponderação e respeitar os
limites impostos, caso contrário a escolha será ilegal.
VASCO PEREIRA DA SILVA, «Direito Constitucional e Administrativo sem Fronteiras», Almedina, Coimbra, 2019.
DIOGO FREITAS DO AMARAL, «Curso de Direito Administrativo», volume II, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2018.
Aulas lecionadas relativamente a esta matéria
Carolina Santos e
Francisca Magalhães, turma 1.
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